sábado, 22 de junho de 2013

NEM GOLPE, NEM REVOLUÇÃO

Foto: Marcelo Camargo/ABr

Nem golpe, nem revolução. Um protesto clássico por direitos sociais

Por Maria Caramez Carlotto, especial para o “Viomundo”

“Em meio à convulsão social que tomou conta do país nos últimos dias, uma pergunta se impôs: quem são e o que querem as massas que marcham sobre as principais cidades do país?

Em meio a muitas dúvidas, hipóteses proliferam. Para a grande mídia oscilante, é o povo que desperta para as “grandes questões nacionais” [especialmente, segundo a "Globo" insiste em  fazer parecer, a obscura (para o povo) negativa à PEC 37, que diminui os poderes demotucanos de Roberto Gurgel/MP, bem como "contra a corrupção" (somente a do PT, pois as corrupções maiores, dos tucanos, devem permanecer escondidas pela mídia e engavetadas nos altos tribunais], numa quase revolução. Para setores clássicos da esquerda, uma direita que pega carona na mobilização para orquestrar um golpe à la 1964.

Este texto é uma tentativa de esboçar uma análise sobre qual é a base social dos protestos das últimas semanas e qual a sua motivação.

O LUGAR DA CRISE ECONÔMICA

Na tentativa de explicar os protestos, muitos buscaram, de início, se agarrar a uma explicação supostamente materialista: os protestos são os primeiros reflexos da crise econômica brasileira, particularmente associados à percepção social da inflação. Nessa chave, as manifestações seriam “só o começo” de uma grave crise social engendrada, no Brasil como no mundo, pela crise econômica. Essa explicação que atribui à crise, particularmente ao aumento da inflação, a motivação subterrânea dos protestos me parece, por ora, equivocada.

Como sabemos, a inflação se faz sentir primeiro e com mais força sobre os trabalhadores informais e sobre os assalariados que ganham abaixo do rendimento real médio (em torno de dois salários mínimos). Não me parece que a base social dos protestos seja de trabalhadores dessa faixa de renda. São jovens na sua maioria com acesso à internet, o que significa, nas grandes cidades, jovens de diferentes classes sociais, mas principalmente de classe média.

Isso não implica dizer que os trabalhadores não apoiem as manifestações e sua pauta. Ao contrário, o ‘Datafolha’ sugere que os protestos têm forte apoio popular, e a expansão da mobilização para as periferias de São Paulo aponta no mesmo sentido. Mas não acho que a massa que compareceu às ruas nos últimos dias seja composta majoritariamente por essa classe social (o proletariado clássico e o subproletariado). Assim como me parece equivocado dizer que as manifestações sejam já o reflexo da crise econômica.

A crise, é claro, está diretamente envolvida no conflito atual. Não na motivação dos manifestantes em sair às ruas, mas na necessidade de contenção dos gastos públicos que se traduziu na dificuldade orçamentária de algumas prefeituras em ceder de pronto às reivindicações. É evidente que elas podem ceder, e a decisão do Rio e de São Paulo em revogar o aumento mostra isso. Mas é uma decisão muito mais complexa em um contexto de crise, do que de expansão da arrecadação.

Não por acaso, ao anunciar a revogação do aumento, o governo e o prefeito de São Paulo fizeram coro em dizer que a decisão terá impactos profundos sobre as finanças públicas, o que certamente é verdade. É esse, e não outro, o lugar da crise econômica no atual momento.

A BASE SOCIAL DOS PROTESTOS 

Pelo que vimos nos últimos dias, e os poucos levantamentos estatísticos realizados com os participantes dos protestos comprovam essa percepção, é possível dizer que a base social do movimento é composta, majoritariamente, de jovens. Jovens de todas as classes sociais – os protestos que acontecem nas periferias de São Paulo o comprovam – mas, principalmente, jovens de classe média.

A classe média, como sabemos, é uma categoria sociológica complicada. Do ponto de vista ocupacional, jovens de classe média são os filhos de profissionais liberais, funcionários públicos, gerentes, assalariados formais de mais alta renda e pequenos proprietários. Do ponto de vista mais pragmático, jovens de classe média são os que, de um modo ou de outro, contam com ajuda familiar para dedicar-se, por um período mais prolongado da vida, apenas, ou prioritariamente, aos estudos. Excluiria, portanto, os jovens trabalhadores.

Ao supor que a base social majoritária das manifestações é de jovens de classe média, muitos assumiriam o clichê de que, por isso, os motivos dos protestos são necessariamente de natureza ideológica e não social e econômica. Mas isso constitui, ao que tudo indica, um outro equívoco. Por ora, é precipitado dizer que os jovens estão indo às ruas para protestar – majoritariamente – por pautas genéricas como o “fim da corrupção”, “menos impostos”, “pelo bem do Brasil” etc.

É evidente que o bombardeio da mídia monopolizada de alto alcance (rádio e TV), que busca atribuir aos protestos esse sentido específico, tem efeitos sobre a composição das passeatas. Vimos, sim, pessoas agarradas à bandeira nacional pedindo o fim da corrupção dentre outras pautas dessa mesma natureza.

Alguns poucos iam até mais longe, levantando bandeiras clássicas da direita como a redução de impostos e a privatização de serviços sociais – duas bandeiras radicalmente opostas à pauta do movimento até então, que defende o transporte como direito social intermediado pelo Estado. Mas, mesmo reconhecendo o efeito da atuação da mídia de massa sobre os protestos, penso que ainda é bastante precipitado explicar a mobilização social massiva dos últimos dias pelo apelo dessas pautas genéricas.

Acho que acertamos mais se reconhecermos que se trata de um protesto majoritariamente de juventude, parte importante dela, oriunda da classe média urbana, mas que envolve uma pauta política clássica: a reivindicação de direitos sociais. O que gera estranhamento é pensar que um protesto majoritariamente de classe média – classe, essa, imersa em uma experiência social de valorização do privado e condenação do público – está reivindicando direitos sociais...

Mas tudo sugere que é exatamente isso que está acontecendo e a causa é simples. Nas grandes cidades, locus privilegiado dos protestos, o transporte coletivo é o serviço público que atinge a maior gama de classes sociais. Não todas as classes, claro, mais uma gama maior do que outros serviços públicos. Isso é um dado importante para compreender o que está acontecendo.

Ao contrário da saúde e da educação, cuja expansão do setor privado criou dois tipos de cidadãos (os que têm acesso aos serviços privados e os que só têm como opção recorrer ao sistema público), no transporte coletivo, não existe essa diferenciação. O serviço é público (embora seja, em parte, como sabemos, privatizado).

Isso significa que as condições desse serviço – incluindo o preço – diz respeito a um espectro social mais amplo do que os outros serviços públicos que são, como o transporte, direitos sociais. É isso que torna a pauta do transporte coletivo ao mesmo tempo politizante e explosiva. Não é somente que o transporte tem impacto sobre o acesso a outros direitos sociais, sobre a economia urbana e sobre o direito à cidade.

O transporte público nas grandes cidades é a face dos serviços sociais que aparece, cotidianamente, para a maior parcela de cidadãos, dentre os quais os jovens, principalmente os estudantes, que têm uma capacidade de organização – impulsionada certamente pelas redes sociais – mais rápida e intensa do que outros setores da sociedade.

É um mérito político inegável do ‘Movimento Passe Livre’ (MPL) ter percebido isso e se organizado exclusivamente em torno dessa pauta, ao invés de reivindicar, como outros movimentos e partidos que se pretendem à esquerda do PT, pautas de caráter moral que geram simpatia na classe média, mas não tiveram, até hoje, poder de mobilização – a exceção é o Collor, mas o contexto era radicalmente diverso.

Há que se acrescentar, ainda, um caldo político contrário à atuação da Polícia Militar, particularmente em São Paulo.

Da repressão aos estudantes da USP ao genocídio nas periferias, da omissão na virada cultural à repressão de jovens nas praças da cidade, a ação fortemente repressora, quando não assassina, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, apoiada pelo discurso belicoso do nosso governador, é outra face do Estado que aparece, ainda que com graus de violência muito distintos, para a população jovem de diferentes classes sociais e que contribuiu para a ampla adesão desse setor aos protestos.

Soma-se a isso uma reflexão social mais ampla sobre a nossa transição democrática, impulsionada pelas comissões da verdade em diferentes níveis e pela pressão social pela revisão da lei da anistia, que torna a repressão policial a manifestações populares ainda mais intolerável.

NEM GOLPE NEM REVOLUÇÃO

Ainda é cedo, portanto, para afirmar que a base social dos protestos tenha mudado substancialmente desde a última segunda-feira e que estes tenham convergido para uma mobilização tipicamente de direita.

Pode ser que muitas pessoas que aderiram aos últimos protestos não tenham a mesma formação política dos que estão desde o começo nas ruas. Isso gera um estranhamento de ambas as partes. Mas pode ser que, mesmo com culturas políticas distintas, as massas que se encontraram em marcha nos últimos dias façam parte de uma mesma base social e partilhem a mesma motivação política, ou seja: são jovens – estudantes ou não – que, devido ao seu potencial de mobilização são capazes de expressar a insatisfação social com o aumento das tarifas de ônibus, trem e metrô.

Que eles tenham uma cultura política diferente da dos militantes tradicionais não significa, necessariamente, que eles sejam “de direita”, nem que a redução da tarifa não seja a sua pauta.  Do mesmo modo, lançar mão de categorias abstratas como “povo” para designar os setores sociais que estão se mobilizando, atribuindo um caráter radical quase revolucionário às manifestações é igualmente precipitado. Nem golpe nem revolução, a mobilização dos últimos dias parece ser, até agora, um protesto clássico por direitos sociais, expressão de um país que, experimentando, nos últimos anos, a expansão da cidadania, acha que ainda é pouco e quer mais.

Essa análise não diz nada sobre o que vai acontecer daqui para frente. Muitas questões seguem abertas: agora que as prefeituras das duas maiores capitais do país revogaram o aumento os protestos vão continuar em torno de outras pautas? As mídias monopolizadas de alto alcance continuarão apoiando e disputando a pauta das manifestações? A direita vai se organizar para além do espontaneísmo das massas? As manifestações nas periferias de São Paulo vão se expandir e alterar a base social dos protestos?

Mesmo sem todas as respostas, é preciso um esforço analítico para compreender o momento presente.”


FONTE: escrito por Maria Caramez Carlotto, doutoranda em sociologia da USP. Publicado no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/politica/maria-carlotto.html). [Trechos entre colchetes adicionados por este blog 'democracia&política'].

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