terça-feira, 27 de janeiro de 2009

PROFESSOR: DISPUTA NA BOLÍVIA É LUTA DE CLASSES

O site Terra Magazine, do jornalista Bob Fernandes, publicou ontem a seguinte reportagem de Marcela Rocha:

A Bolívia aprovou uma nova Constituição com a votação de 3,8 milhões de eleitores.

Para o professor em Relações Internacionais e cientista político, Sérgio Gil, o referendo boliviano faz parte de uma tendência compensatória da política internacional.

Tem ocorrido uma busca por recompensar os povos historicamente excluídos de processos decisórios. Na conquista dos direitos civis por parte dos negros norte-americanos, mais recentemente no fim do apartheid na África do Sul, as cotas no Brasil.

O referendo ocorreu no último domingo. Votou-se a nova Constituição. São 411 artigos propostos pelo governo Evo Morales. Neles, temas polêmicos que podem afetar as relações com o Brasil.

Recursos hídricos e as reservas de gás, por exemplo, não podem ser privatizados. Os recursos energéticos só podem ser explorados pelo Estado boliviano.

Segundo Gil, o que tem causado problemas é a perda de privilégios da elite boliviana. O professor analisa que "tratam-se de índios e não-índios, mas que na verdade é uma luta de classes, ricos e não-ricos". Portanto alerta que "Evo não siga o caminho de Chávez".

- O SENHOR QUER DIZER QUE HUGO É UM EXEMPLO PERIGOSO PARA EVO MORALES?

- Na medida em que Chávez radicaliza para se eternizar no poder, sim.

Leia a entrevista na íntegra:

TERRA MAGAZINE - A OPOSIÇÃO BOLIVIANA ACREDITA QUE DIFERENCIAR OS DIREITOS ENTRE OS INDÍGENAS E OS QUE NÃO O SÃO IRÁ FRAGMENTAR A POPULAÇÃO. O SENHOR CONCORDA?

SÉRGIO GIL - Durante muitos anos, desde a dominação espanhola, a permanência dessa oposição mais ligada à elite branca sempre esteve no poder e agora se sentem ameaçados porque têm que partilhá-lo. Usam a religião para se opor ao resultado desse referendo e aos termos da nova carta. O que ocorre agora é uma emergência dessa maioria indígena que sempre foi marginalizada e desvinculada do processo decisório. Quem tem poder, teme perdê-lo. A fragmentação pode sim acontecer caso haja uma espécie de vingança por parte dessas lideranças indígenas, mas acredito que não. O vice-presidente boliviano é branco e provêm da elite de seu país. Nota-se que, desde o princípio, Evo Morales tenta compor uma conciliação e não fragmentação.

NO TOCANTE À POSSE DA TERRA, O SENHOR AVALIA QUE EVO QUER FAZER UMA PROFUNDA REFORMA AGRÁRIA?

Isso sim bate de frente com os interesses da elite dominante, que dispõe de várias faixas de terra. Inclusive é o caso de fazendeiros brasileiros que, em uma área mais fronteiriça, têm enormes fazendas de exportação de soja. Mas o Evo é suficientemente inteligente pra perceber que não pode destruir o sistema produtivo porque se o fizer, quebra a economia boliviana. Justamente por isso é que optou por não ser uma medida retroativa. Esta constituição não causa uma fenda grande, a não ser que a elite continue a ameaçar recessão, o que com certeza não receberá apoio do restante da América Latina.

MAS AINDA ASSIM, NÃO COMPROMETE O FUTURO DA ECONOMIA BOLIVIANA?

Não, até porque a grande força da economia boliviana ainda é a produção mineral, cobre e estanho. Mas quanto à produção agrícola, o fato de não ser retroativo significa que o que existe será mantido e acontecerá uma convivência entre dois sistemas: latifúndios e minifúndios. Se essa convivência vai comprometer a economia boliviana, temos que esperar pra ver.

A Bolívia perdeu sua única saída para o mar após a chamada Guerra do Pacífico (1879-84).

NA NOVA CONSTITUIÇÃO ESTÁ PREVISTO QUE TERÃO "O DIREITO IRRENUNCIÁVEL E IMPRESCRITÍVEL SOBRE O TERRITÓRIO DE ACESSO AO OCEANO PACÍFICO". ISTO CAUSARÁ DESAVENÇAS COM O PAÍS VIZINHO?

Não necessariamente. O Chile acenou com a possibilidade de rever os termos da perda do território e negociar essa saída para o mar para a Bolívia. Por isso não acredito na possibilidade de atrito. Até porque existe muita colaboração entre os países. A não ser que a Bolívia queira recuperar todo o seu território.

A NOVA CONSTITUIÇÃO BOLIVIANA TEM ALGUM IMPACTO PARA A AMÉRICA LATINA?

A Bolívia é um país historicamente instável, essa constituição pode ser um fator que traga estabilidade na medida em que ela contempla a população alijada dos processos decisórios, embora desagrade a elite boliviana. Mas tudo irá depender de como se dará a coexistência desses dois segmentos. Tratam-se de índios e não-índios, mas que na verdade é uma luta de classes, ricos e não-ricos. Tudo dependerá da conciliação entre classes. E que Evo não siga o caminho de Chávez. Embora a Venezuela tenha ajudado a Bolívia, Evo não pode se atrelar demais à Venezuela.

O SENHOR QUER DIZER QUE HUGO É UM EXEMPLO PERIGOSO PARA EVO MORALES?

Na medida em que Chávez radicaliza para se eternizar no poder, sim.

ESTE NOVO REFERENDO PREJUDICA AS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE BRASIL E BOLÍVIA?

Não necessariamente. O grande ponto que poderia gerar algum atrito é a questão da terra.

Mas acredito que isto será respeitado, justamente para evitar problemas. Há uma certa cumplicidade do Presidente Lula com o processo político boliviano, até porque ele não quer que o Brasil piore sua imagem de imperialista na região.

EXISTE ALGUMA OUTRA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA SEMELHANTE AO QUE HOJE OCORRE NA BOLÍVIA?

Isto é uma tendência. Tem ocorrido uma busca por recompensar os povos historicamente excluídos de processos decisórios. Na conquista dos direitos civis por parte dos negros norte-americanos, mais recentemente no fim do Apartheid na África do Sul, as cotas no Brasil. Isto, porque democracia é mais do que eleitoral. Ela deve ser partilhada entre os que contribuem com a riqueza nacional, ou seja, todos.”

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