domingo, 15 de junho de 2008

ENTREVISTA COMPLETA COM MANGABEIRA UNGER

O jornal “O Estado de São Paulo” de hoje (15/06) publica a entrevista concedida pelo Ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, à repórter Laura Greenhalgh. Apesar de extensa, vale a pena lê-la pela grande quantidade de informações e conceitos estratégicos para o Brasil apresentados pelo ministro:

'DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL É ABSTRAÇÃO'

“Ambientalistas radicais se acautelem: o ministro quer desfolhar a tese de que a Amazônia seja preservada como santuário de árvores, rios, bichos e humanos sem perspectivas.”

“Quem entra no gabinete do ministro de Assuntos Estratégicos, o filósofo e jurista Roberto Mangabeira Unger, depara-se com a solene reprodução de um retrato de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, emoldurada em dourado e pendurada no salão de despachos em estilo clean.

Não se trata de idolatria confessa, mas de um daqueles presentes de grego com que parlamentares costumam brindar ministros recém-empossados. Respeitável conhecedor de história do Brasil, o ministro explica com o sotaque americanizado que a infância vivida nos Estados Unidos colou indelevelmente na sua biografia: “Não faça comparações. Este aí teve poderes quase ditatoriais no Império. Eu não tenho poder algum”.

O futuro dirá. Neto de um célebre político baiano, o governador Octávio Mangabeira, professor titular de Direito em Harvard e considerado brilhante pensador do mundo jurídico americano, Mangabeira Unger, 61 anos, confessou algo pessoal nesta entrevista ao Aliás: sente-se feliz. Graças ao convite do presidente Lula, feito em outubro do ano passado, para assumir uma pasta ministerial devotada a projetos de longo prazo, conseguiu finalmente espaço institucional (e meios) para defender idéias pelas quais batalha há décadas.

Como a de que o Brasil precisa criar um novo modelo de desenvolvimento, jogando fora o formulário de soluções importadas e desistindo da idéia de ser uma “Suécia tropical”. A felicidade é tanta que o ministro parece uma parabólica, antenando todos os setores da vida nacional. Fala de meio ambiente, educação, política, trabalho, agricultura. Com idéias para tudo, mais parece um organizador-geral da Nação. Sobre aquele que já foi alvo de suas críticas mais ácidas, faz outra revelação: “Ousaria dizer que o presidente tem tido tolerância crescente comigo...” E desata a rir. Também aprecia o senso de humor de Lula.

Mangabeira Unger filosofa alto, mas traduz idéias quase ao rés do didatismo. Sabe que corre contra o relógio - tanto pelo que resta do segundo mandato de Lula quanto pelo fato de tocar um ministério que pisa em campos minados.

Seu maior desafio, hoje, é a coordenação do Plano Amazônia Sustentável, o PAS, que teria despertado a mágoa derradeira de Marina Silva, levando-a a abandonar o Ministério do Meio Ambiente há um mês. “Não tinha sentido o PAS ficar num ministério setorial, como o de Marina. Mas sempre nos demos tão bem, por que ela decidiu sair?”, indaga um inconformado Mangabeira Unger, bem menos enfático em relação ao sucessor da ministra, Carlos Minc. “Eu o conheci agora, estamos conversando.”

Seu pensamento gira em torno de um feixe de convicções, entre elas, a de que é preciso crer na vitalidade brasileira - “isso é revolucionário”, sublinha - e apostar na posição de destaque que o Brasil terá no mundo. Chega a dizer que o País será, fatalmente, o parceiro preferencial dos Estados Unidos.

De política americana, entende um bocado, embora se mantenha discreto ao falar da campanha eleitoral em curso. Sabe-se que Barak Obama foi seu aluno em Harvard, “um aluno talentoso, com qualidades morais e intelectuais”, e que a amizade perdura. Mas o ministro, que não se diz político, herdou a esperteza do avô: “McCain também tem biografia respeitável”. Não é hora de declarar favoritismos.

Quando esta entrevista chegar aos leitores, o senhor estará em viagem de trabalho pela Amazônia, em pleno fim de semana. Sinal de que o PAS decolou?

O PAS não é planilha. É um conjunto de diretrizes e compromissos, cuja implementação está sendo feita. Já perdemos muito tempo com essa guerra entre desenvolvimentistas e ambientalistas. Uma falsa guerra, aliás.

Pela primeira vez a Amazônia ocupa o centro da atenção nacional. Porque o Brasil está descobrindo, até intuitivamente, que esta não é uma causa regional. A Amazônia é a nossa grande fronteira, não só em termos geográficos, mas imaginários. São poucos os brasileiros que ainda se batem pela idéia de que a região tem de ser um santuário vazio de gente e ação econômica. Como também poucos aceitam a idéia de que o preço do desenvolvimento inclui todas as formas de produção, até as predatórias. A grande maioria dos brasileiros rejeita as duas posições, insistindo na tese do desenvolvimento sustentado. O problema é que esta tese é uma abstração.

Desenvolvimento sustentado é abstração?

É uma tese sem conteúdo. A grande convergência nacional sobre a Amazônia ainda se vale de uma abstração. Em diferentes lugares tenho dito o seguinte: a Amazônia não é só a maior coleção de árvores do mundo, é também um grupo de pessoas. Sem alternativas econômicas, essas pessoas serão impelidas, inexoravelmente, a atividades que resultarão na devastação da floresta. E, aí, a questão ambiental se transformará no que foi a questão social para o presidente Washington Luís - caso de polícia. É difícil defender uma vasta região sem projeto. As tarefas do desenvolvimento e da preservação estão irremediavelmente entrelaçadas.

Sua visão colide com a de uma boa parcela do ambientalismo.

Ambientalismo carente de um projeto econômico construtivo é inconsistência.

A crítica que faz ao desenvolvimento sustentado no Brasil vale para outros lugares do mundo?

Não é uma crítica, é um problema. E acontece em outras partes. Há uma diferença importante entre o tipo de ambientalismo que prevalece nos países ricos e o tipo que nós tentamos construir no Brasil.

Nos países ricos, o ambientalismo compõe uma política pós-ideológica e pós-estrutural. Como muitas alternativas de organização institucional, aventadas no curso do século 20, foram testadas e desacreditadas, então os países ricos gostam de dizer “agora cuidemos do nosso grande jardim, a natureza”. Não é assim. Resolveremos problemas de preservação e desenvolvimento com inovações que exigem grandes avanços de imaginação.

Quando foi chamado para o ministério, o senhor sabia da missão que teria pela frente?

Ao assumir, tive a preocupação de definir um conjunto de iniciativas que encarnasse a mudança no modelo de desenvolvimento que o País e o presidente buscam. Se formulasse apenas algo conceitual sobre o futuro, seria enorme o risco de apresentar um projeto natimorto, que não sairia do papel. Portanto, procurei formular estratégias de longo prazo pensando em ações concretas, tangíveis, como se fossem as primeiras prestações do futuro.

Que ações vêm por aí?

Identifiquei cinco áreas: oportunidade econômica, oportunidade educativa, qualidade da gestão pública, defesa e Amazônia. Nesta área, imaginei outros sete conjuntos de iniciativas. Estou convencido de que é a partir da Amazônia que se pode pensar o futuro do país.

Como chegou a essa certeza?

Há várias maneiras de se chegar a ela, inclusive numa visão rudimentar da história brasileira: no século 19 ocupamos o litoral, no século 20 avançamos para o Centro-Oeste, agora é a vez da Amazônia. Ocorre que, hoje, essa dinâmica própria do Brasil converge com uma preocupação mundial, segundo a qual a Amazônia deve ser usufruída por todo o mundo. Por favor, gostaria, neste ponto, de explicar rapidamente quais são os sete conjuntos de iniciativas.

Pois não.

O primeiro tem a ver com a regularização fundiária. Se há um desafio na Amazônia com prioridade sobre todos os demais é tirar a região do caldeirão de insegurança jurídica em que se encontra. Falo de uma coisa básica, a titularidade da terra, tanto na Amazônia com floresta quanto na Amazônia sem floresta. E aí cabe um esclarecimento preliminar: existe mais de uma Amazônia. O que chamamos de Amazônia Legal ocupa quase 60% do território nacional, incluindo vastas áreas de cerrado e savana tropical, que jamais foram floresta, ou, pelo menos, não são floresta há muito tempo. Em áreas assim está o Estado do Mato Grosso, hoje um dos grandes celeiros não só do Brasil, mas do mundo.

Mas como pensa resolver a insegurança fundiária?

Não basta fortalecer os órgãos responsáveis pela regularização fundiária, a começar pelo Incra. Nenhum dos países que enfrentaram problema fundiário de dimensão parecida com o nosso - como os Estados Unidos, no século 19 - conseguiu resolvê-lo sem mudanças substanciais nas leis que governam a titularidade e a transmissão da propriedade. E não seremos exceção. Teremos que chegar, até por simplificação do Direito Civil, a um mecanismo que rapidamente substitua posse insegura por propriedade plena.

O segundo conjunto de iniciativas trata de medidas contra o desmatamento.

O terceiro tem a ver com a população amazônica de extrativistas e pequenos produtores agrícolas, que atuam na zona de transição entre a floresta e o cerrado. Precisamos oferecer a eles alternativas economicamente viáveis e ambientalmente seguras. Porque hoje esses produtores atuam como uma espécie de linha de frente voluntária para que grandes agricultores e pecuaristas venham e se instalem. E poderiam funcionar justamente como um cordão de proteção da floresta.

O que chama de Amazônia sem floresta? Inclui área devastada?

Sim, mas falo aqui de cerrado e savanas tropicais, onde se tem grande produção agrícola.

E grande devastação.

Não é assim. Toda a produção agrícola do Mato Grosso ocorre em 8% da área daquele Estado. No Brasil, poderíamos, com relativa facilidade, dobrar a área de cultivo e triplicar nossa produção sem tocar em uma única árvore! Repito: nosso problema não é o conflito entre desenvolvimento e preservação. Nosso problema é que estamos muito aquém de onde deveríamos estar tanto em desenvolvimento quanto em preservação.

O senhor parou no quinto conjunto de iniciativas.

Tem a ver com indústria. Ainda hoje fala-se disso na Amazônia como se fosse um sacrilégio. Tem indústria lá? Tem. Na Zona Franca de Manaus, produzem-se coisas como motocicletas, que nada têm a ver com floresta. Há espaço para indústrias que transformem matérias-primas do lugar, inclusive gerando tecnologia para o manejo sustentável da floresta tropical. A mineração no Pará, por exemplo, que é uma atividade econômica que só perde para a Zona Franca na região, agrega pouquíssimo valor.

O sexto ponto é transporte. Queremos superar essa nossa fixação histórica em rodovia e construir um paradigma multimodal de transporte, integrando os elementos rodoviário, ferroviário e aquaviário. E ainda estabelecer as ligações aéreas da Amazônia com o resto do mundo.

O sétimo conjunto é capacitação de gente, sem o que nada vai para a frente.

O senhor justifica a política agrícola do governador Blairo Maggi?

Sim. Mas por que só falar do governador do Mato Grosso, cujo Estado tem características geográficas e agrícolas próprias? Por que não falar também das medidas preservacionistas implantadas pelos governadores do Amapá e Acre?
Volto ao mesmo ponto: é falso o conflito entre desenvolvimento e preservação. Meu problema agora é correr atrás de conteúdo para fazer do desenvolvimento sustentável uma realidade.

Até porque seus projetos são de longo prazo, mas sua permanência neste governo tem prazo mais curto.

O longo prazo só existe se tiver expressão a curto prazo. Se tentarmos fazer tudo ao mesmo tempo, na Amazônia, corremos o risco de não alcançar o grau de densidade necessário para que essas experiências surtam efeito um transformador e sinalizem o caminho. Vamos logo identificar microrregiões onde concentrar iniciativas.

Há um discurso circulando nos países ricos de que não somos capazes de tomar conta desses biomas.

A Amazônia brasileira é do Brasil, e não desses países que já devastaram suas florestas. Estou determinado a ter um diálogo com grandes especialistas estrangeiros sobre isso. Nós, no Brasil, não devemos temer o discurso que vem de fora. Ao contrário, temos que adotar uma postura sem preconceitos, magnânima até, com o mundo, fundada na afirmação incondicional da nossa soberania. Percamos de vez o medo de idéias ou críticas. O que nos inibe diante do mundo é a indefinição do nosso próprio projeto.

Considerando o cenário político hoje, é grande a chance de termos um futuro presidente entre os aliados de Lula. Concorda que talvez nem isso garanta a continuidade das políticas esboçadas agora?

Eu me preocupo o tempo todo em construir um projeto que não seja apenas de um governo, mas do Estado. Talvez meus maiores obstáculos não sejam nem os políticos, nem os econômicos, mas os intelectuais. Não sinto falta de calor, sinto falta de luz! Faltam-nos idéias - e não se muda o mundo sem elas.

Há outro problema, de ordem moral ou, quem sabe, psicológica. Falo da histórica falta de confiança em nós mesmos, dessa tradição brasileira de trilhar caminhos abertos por países que nos acostumamos a tomar como referência. Agora chegou a hora de desbravar, de contar com uma rebeldia nacional.

Na história moderna, as nações foram construídas por elites dirigentes que converteram as massas ao ideário nacional por meio de guerras e da propaganda. No Brasil foi diferente. As elites sempre foram ambivalentes, ou seja, raramente tiveram com a idéia de Nação uma identificação incondicional. Quem se identifica com a Nação, aqui, é o povo, não as elites. Então tratemos de afirmar nossa originalidade coletiva, que é tão viva na cultura, mas raramente traduzida no plano das instituições.

Que o papel o Brasil está assumindo no mundo, ministro?

Vejamos essa questão com muita sobriedade. Ao contrário da China, temos uma democracia falha, porém vibrante. Ao contrário da Índia, temos unidade nacional. O que nos tem faltado, além da qualificação do nosso povo e da ampliação de oportunidades, é uma disposição de jogar o formulário fora.

Há duas lições que podemos tirar do que ocorreu no plano internacional nas últimas décadas. Primeiro: vai para a frente quem se abre para o mercado e para o mundo. Segundo: só vai para a frente quem, ao se abrir para o mercado e para o mundo, joga fora o formulário.

Dê um exemplo de como o País está grudado ao formulário.

O Brasil é o país mais parecido com os Estados Unidos no mundo. Mas esse fato não é reconhecido nem lá nem cá. Parecidos como? São dois países imensos, um no Norte, outro ao Sul, fundados na mesma base de povoamento europeu e escravatura africana. São muito desiguais nas suas categorias. Os EUA são o país mais desigual dentre os ricos. O Brasil é o mais desigual dentre os países em desenvolvimento. Mas em ambos, paradoxalmente, a maioria das pessoas continua a acreditar que tudo é possível. São países onde a vitalidade fervilha. Só que os EUA passaram pelo fetichismo institucional, ou seja, acreditaram ter o formulário perfeito e definitivo de uma sociedade. Ora, isso é uma superstição.

Pois temos o problema inverso dos americanos: enquanto eles fetichizam as instituições que criaram, não confiamos na capacidade de criar as nossas. E as importamos. Temos que dar olhos e asas a essa energia humana que existe no Brasil. Isso acontecerá quando criarmos o novo modelo de desenvolvimento. E, claro, quando alcançarmos uma democracia na qual mudanças não sejam entendidas como crises.

O candidato democrata à Casa Branca, Barak Obama, afirmou que Brasil e EUA devem juntar forças na defesa da energia limpa, mas que o etanol americano não se subordinará ao etanol brasileiro. Como interpretar essa declaração?

Os EUA estão se aproximando de mais um momento de inflexão, como tantos outros já vividos no país. Historicamente, isso ocorre duas a três vezes por século, às vezes com crise, como nos anos Roosevelt, às vezes sem crise, como no início do século 20. A inflexão de agora é do tipo sem crise. É bem possível que, nos próximos tempos, os EUA venham a construir um projeto sucedâneo ao de Roosevelt, de criação e ampliação de oportunidades. A eleição presidencial americana, portanto, independentemente do resultado que venha a ter, será menos importante do que esta transformação subterrânea. Considere, também, a mudança do grau de importância dos EUA no mundo. Aí entra o Brasil.

Entra como?

Estamos num momento de construção nacional e temos semelhanças com os EUA. Se avançarmos nessa construção, sem dúvida seremos parceiros privilegiados dos americanos, mas com um engajamento crítico como nunca tivemos antes. Para isso será necessário abandonar a visão míope, muito comum no Brasil, de considerar tudo pelo prisma do protecionismo comercial. Intensifiquemos relações com Índia, Rússia, China. Enfim, o Brasil ascende ao primeiro plano mundial, sem ainda ter definido seu caminho. Não basta apostar tudo em um invento tecno-produtivo como biocombustível. É preciso ter caminho e proposta.

Ministro, nos últimos anos, o senhor fez uma crítica reiterada à política econômica brasileira. Inclusive dizendo que os governos FHC e Lula convergiram para o mesmo caminho, equivocado no seu entender. Como é que hoje o senhor se sente tão à vontade servindo a um governo que tanto criticou?

Porque continuo defendendo as mesmas idéias. Vou dar um exemplo. No Brasil, sobram partidos e faltam alternativas. A verdade é que o nosso sistema político-partidário jamais se recuperou do trauma do regime militar. Apesar de tantos partidos, parece que só temos uma idéia a continuar perseguindo: construir a Suécia tropical. Esta é uma idéia que discuto hoje, mas desenvolvo há tempos em meus trabalhos.

Que país fictício é esse?

A idéia é a seguinte: grandes alternativas de desenvolvimento no curso do século 20 foram derrotadas. Sobrou então um caminho único no mundo, que é o modelo institucional estabelecido nos países ricos do Atlântico Norte. Um caminho que pode ser amargo, daí utilizar-se as políticas sociais como açúcar. O ideário da Suécia tropical consiste justamente em adaptar esse modelo às nossas circunstâncias. Buscar a humanização da economia de mercado e da globalização virou o leitmotiv da política brasileira. Sou um adversário desse ideário. Porque o País não quer, e nem precisa, humanizar o inevitável, mas reconstruir o existente. O povo não quer açúcar. Eu diria que isso é revolucionário.

Vai aí uma crítica às políticas assistencialistas do governo?

Não posso ser contra políticas compensatórias, porque quem está imobilizado pela miséria não tem como agir, precisa delas. O perigo é imaginar que essas políticas sejam suficientes e substituam uma agenda de ampliação de oportunidades.

Agora mesmo estou trabalhando com o ministro Patrus Ananias para definir o próximo passo do Bolsa-Família. Precisamos de um modelo que incentive capacitações, focalizando as famílias que estão mais próximas de “escapar” da dependência dessas transferências. Portanto, não as mais pobres, mas as menos pobres nesse universo de atendimento. As mais pobres terão de continuar no programa tal como está hoje.

O senhor também vem trabalhando com o ministro Fernando Haddad, da Educação.

Formulamos iniciativas com vistas a um novo modelo de escola média, que é elo fraco do sistema educacional brasileiro e deve ser consertado. Até para que se transforme numa cunha que nos ajude a demolir esse ensino enciclopédico e informativo que está aí, substituindo-o por um ensino analítico. Um ensino que leve o indivíduo a ser capaz de fazer análise verbal e análise numérica.

Também será necessário mudar o ensino técnico profissionalizante, que continua a ser ensino de ofícios. Isso não faz sentido na evolução das economias contemporâneas, que exige das pessoas um repertório cada vez maior de capacitações.

Nunca foi fácil harmonizar interesses locais e federais, como o senhor quer tentar, em todos os níveis. São lógicas em conflito.

Então flexibilizemos o federalismo brasileiro. Eu posso até utilizar uma expressão tirada do vocabulário do Direito constitucional americano, para afirmar que o federalismo é um conjunto de laboratórios. Se temos federalismo, então vamos experimentar.

Experimentamos pouco?

Vivemos um paradoxo. O que é o Brasil? Sua grande vitalidade. E como está o Brasil? Enfiado numa camisa-de-força. Nossas instituições, políticas, econômicas, educacionais, são a nossa negação.

De Gaulle, certa vez, disse que o Brasil não era um país sério. O senhor já escreveu que o Brasil é um país triste.

Eu escrevi? Não me lembro. Em que contexto?

Em um artigo falando justamente do modelo econômico, da baixa participação do salário na renda nacional, dos trabalhadores jogados na informalidade...

Bom, devo ter dito, afinal já escrevi muita coisa. Hoje não vejo a tristeza como um problema. Mas, sim, a supressão da vitalidade brasileira. O Brasil fervilha de vida dentro de uma camisa-de-força. Daí a importância que atribuo à Amazônia. Lá está o terreno onde vamos começar de novo. Onde poderemos nos reimaginar e nos organizar. Mas não se combate uma ortodoxia universal com heresias locais. Só com heresias universalizantes. Por isso conclamo os brasileiros a ousarem. Que cometam heresias. Que joguem fora o formulário.

O senhor já foi pré-candidato à presidência da República e, na época, chegou a falar do primeiro governo Lula como o maior esbulho eleitoral da história do Brasil. Quem mudou: o senhor ou o presidente?

Insisto em dizer que trabalho em torno de idéias que sempre defendi. Como a de rejeitar a Suécia tropical. Ou a de buscar inovações institucionais para construir um modelo de desenvolvimento baseado na criação de oportunidades econômicas e educativas.

Até agora, o presidente Lula está me dando todo apoio, com grande entusiasmo. Até acha graça das minhas idiossincrasias. Ousaria dizer que é crescente a tolerância do presidente comigo... (risos). Não sei até que ponto isso pode chegar, porque, embora avancemos com projetos de construção nacional, haverá um preço a pagar: os conflitos e as controvérsias que virão.

Pensa se candidatar de novo?

Meu projeto político são esses 40 anos em que estive procurando uma alternativa para o Brasil. Só tive episódios de engajamento eleitoral quando julguei que seriam úteis para uma tarefa maior. Estou muito feliz hoje. Fui convocado para fazer, dentro do Estado brasileiro, o que já vinha fazendo no campo doutrinário. Não sou político profissional, mas também não nego a possibilidade de um novo engajamento eleitoral se num determinado momento isso for útil. Mas isso tudo é circunstancial. O importante agora é criar conteúdo e dar direção.

Este governo estava precisando de um filósofo?

A filosofia, no sentido das formulações mais ambiciosas e exigentes do pensamento, é muito semelhante à política, na sua ambição transformadora. São atividades humanas muito parecidas. Porque dizem respeito a tudo e não a algo em particular. Pedem uma mobilização completa das emoções e atenções. É a vida humana conduzida ao nível mais alto de intensidade.”

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